quarta-feira, 5 de outubro de 2011

The King is dead. That will be all for today

Hoje acordei com vontade de ser pedagógico, o que me incomoda. Incomoda-me por ser muito difícil ser pedagógico sem ser pedante - e eu detesto pedantes.

Pode-vos parecer estranho. Podem achar que a pedagogia e o pedantismo não têm nada em comum, mas eu tenho uma teoria. Não é nenhum teorema revolucionário, nem nada que mereça ser assobiado por um velhote erudito a um auditório. Simplesmente acho que a raiz nunca é a única coisa que as palavras têm em comum. E pedante e pedagogo têm a mesma raiz - paidós, criança em grego. Só que o pedagogo conduz as crianças ao conhecimento, enquanto o pedante impinge-lhes esse conhecimento.

Peço-vos, por isso, que se deixem conduzir por um momento, e que o façam sem contudo abdicarem de abandonar a carripana à primeira sensação de que estão a ser obrigados a ir a algum lado.

Hoje é 5 de Outubro, dia da Implantação da República. Tenho-lhe carinho. Porque a raiz das palavras nunca é a única coisa que elas têm em comum, esse carinho é também uma manifestação envergonhada de caridade - tenho carinho pelo 5 de Outubro porque ele é o parente pobre dos feriados históricos nacionais. Não tem o fervor patriótico da Restauração ou do dia de Portugal e das Comunidades. Empalidece por comparação com o simbolismo democrático (apesar de tudo) do 25 de Abril. A História ensina que os anos seguintes foram negros. Até a refundação dos símbolos (a bandeira, o hino) fede a sobrecompensação pela falta de identidade deste diazinho. A República foi implantada. Implantada - como um chip, um vírus, uma prótese. Um elemento externo que se impôs, por determinação alheia, na esperança de resolver um problema sistemático.

O leitor detecta, e bem, o esturro da análise história em cima do joelho. Mas eu não quero levá-lo por aí. Quero, sem entusiasmo particular por nenhum dos sistemas de governo, fazer um juízo de valor actualizado da República.

Em contradição directa com o que mandam os livros, começo com uma pequena ruptura da tradição. Trago-vos as virtudes da Monarquia.

A Monarquia, ao contrário do que se diz à boca-cheia, tem muita coisa porreira.

Para começar, o Rei tem uma autoridade natural. Este natural é lato - não quero dizer que os animais e as plantinhas se organizaram de modo a investir o Rei no poder para lacrar o seu decreto-lei. O certo é que essa autoridade, tivesse ou não o beneplácito do Povo, alavancava-se sempre numa certa ideia de Continuidade. O Rei aparece como um símbolo daquilo que não muda em Sociedade. Aquilo que não muda pode ser uma Religião, uma Ideia, ou um Espírito. Mas, seja o que for, o Rei representá-lo-á, e integrará essa Ideia, esse Espírito ou essa Religião no fundamento da sua autoridade. Ainda que haja quem não distinga esta virtude, ela parece-me preencher um certo desejo de materialização da Política, por oposição a uma Política inócua, de instrumentalização dos valores políticos aos objectivos eleitorais.

O Rei, por falar nisso, não tem compromissos eleitorais. Não tem de ir ao Avante, ao Pontal, ao Chão da Lagoa, e ao Bolhão. Não tem de fingir ser melhor do que é nas alturas de eleições. Sente a pressão de ser adequado, mas não a de ser popular.

O Rei não tem fidelidades partidárias.

O Rei é preparado exclusivamente para governar. O Príncipe Guilherme não andou para aí a hesitar entre o Agrupamento 3 e o 4. Dedicou a sua vida a preparar a sua estrutura intelectual, física, e psicológica para administrar os assuntos de Estado, o que, em todo o caso, impede o descaramento próprio da ignorância ou a soberba típica do autodidacta.

A Realeza é mais disponível. O poder perpétuo exige dos plenipotenciários uma maior exposição ao público. E o Público adora a exposição real, porque se revê no comportamento e nos hábitos no Monarca, neles discernindo uma certa identidade nacional. É uma espécie de Casa dos Segredos, mas com classe. Pronto, talvez não seja uma Casa dos Segredos, mas há maior intimidade entre um Povo e o Rei do que com os restantes órgãos políticos, frequentemente "despessoalizados". A Realeza tem lugar mais confortável no imaginário. Como há dias dizia D. Duarte, ninguém começa uma história infantil com "Era uma vez um Presidente da República".

Nestas virtudes, como nas pessoas que vão de branco para o andar de baixo do Lux, o mais provável é que dêem para os dois lados.

Mas, por todos os argumentos a favor da República, quero destacar apenas o seguinte, por ser suficiente. Num regime Republicano, ninguém nasce alguma coisa. Dito ao contrário (até porque fica mais bonito): num regime Republicano, não há nada que alguém não possa ser.

A República representa, no limite, que qualquer criança nascida hoje pode, dentro de 35 anos, ser a mais alta figura do Estado Português.

Não se subestime o valor desta ideia. O Chefe de Estado, enquanto figura institucional maior da Nação, representa o pináculo da responsabilidade pessoal na gestão da coisa pública.

Dizer que não chega a essa posição quem quer, mas só quem pode, é fazer prevalecer o poder sobre o querer. E quem diz o poder sobre o querer, diz o destino sobre o mérito, a herança sobre o trabalho, a linhagem sobre a aprendizagem. É transmitir, consciente ou inconscientemente, a mensagem de que, entre as coisas que não se podem mudar, está a nossa aptidão para líderes de homens, guardiães de valores, ou, para os mais cínicos, figura decorativa.

Dizer que uma pessoa pode ser tudo, menos aquilo que lhe veda o Destino, é dar o Destino uma importância que ele não tem - a de nos limitar à partida. Deixa de ser condução de crianças, e passa a ser imposição a crianças.

É pedante.

É por isso, que, no limite, no limite absurdo da simplificação mais absoluta, o dia de hoje é também um grande dia. É dia de plebeus chamarem a si virtudes de reis.

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